paulafulini

Monday, January 19, 2009

Mude


Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.
Depois mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde vc passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.

Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma do outro lado da cama... depois, procure dormir em outras camas.

Assista a outros programas de TV, compre outros jornais, leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.

Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.

Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia: o novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor, a nova vida.

Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.

Almoçe em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida, compre pão em outra padaria.
Almoçe mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.

Escolha outro mercado ... outra marca de sabonete, outro creme dental... tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.

Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias. Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.

Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se que a vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano.

Se vc não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.

O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia.
Só o que está morto não muda!
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!

Tuesday, January 06, 2009

Eu sei mas não devia - Clarice Linspector


Eu sei que a gente se acostuma.

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em aptos. de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer o sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar-condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma reviravolta acolá.
Se a praia estiver contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar e se perde de si mesma.